Crítica: Os Anéis de Poder

Conheci J.R.R. Tolkien em meados de 1990 quando peguei emprestado de um amigo da escola O Hobbit. Engraçado como certas coisas nos marcam. A leitura das aventuras de Bilbo foi um desses momentos. Lembro do nome (Felipe) e até o apelido do cara (Tetas). Recordo das aulas que tive naquele dia. No primeiro período foi Literatura, no segundo, Matemática. Chegando em casa devo ter devorado metade do livro. Sedento por mais, fui atrás das outras obras de Tolkien. O Senhor dos Anéis, Silmarillion, Contos Inacabados, entre outros. Gosto tanto dessa mitologia que tenho um ritual, todo ano eu leio a trilogia do Anel. Ou seja, sou fã devoto de Tolkien.

Todo esse intróito é para atentar o leitor de que o texto a seguir é a visão de uma pessoa apaixonada pelo tema com mais da metade da minha vida dedicada à leitura no universo criado por John Ronald Reuel Tolkien. Porque, como disse Bilbo certa vez, “É um negócio perigoso, Frodo, sair pela sua porta. Você pisa na estrada e, se não mantiver os pés, não há como saber para onde pode ser levado”.

Nota: Sendo um filólogo, primeiramente Tolkien criou as línguas dos povos da Terra-média. Só depois inventou as histórias. Em vários textos ele deixa bem claro como devemos ler certas letras. Por exemplo, o “C” tem o som de “K” (Celebrimbor lemos como se fosse casa e não cipó). Já o “G” tem o som de “GUI” (Gil-galad deve ser pronunciado com o som de gato e não gilete).

CUIDADO! SPOILERS DE OS ANÉIS DE PODER

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Jeff Bezos não poupou seu rico dinheirinho na produção de Os Anéis de Poder. Cada episódio custou cerca de U$ 89 milhões, praticamente 460 milhões do fajuto dinheiro brasileiro. E todo esse montante se traduz na tela. A produção é praticamente perfeita e impecável. Figurino, maquiagem, cenários, efeitos visuais e trilha sonora (concebida por Bear McCreary, o mesmo de God of War), coreografia, diálogos, direção e ambientação. A todo momento fui lembrado de que estou vendo Tolkien em sua essência.

A aposta, entretanto, é arriscada. As últimas notícias dizem que a série terá nada menos do que cinco temporadas. O problema é que não existem tantos textos e contos sobre o período que a série retrata, a Segunda Era. Ou seja, o filler (a famosa encheção de linguiça) é tão inevitável que já temos muito disso nesses dois primeiros episódios.

Personagens inventados como Arondir (Ismael Cruz Córdova) e seu par romântico, Bronwyn (Nazanin Boniadi), por exemplo, ainda irão aparecer muito porque, como eu disse acima, existe espaço demais para os showrunners “inventarem histórias” baseadas no que foi deixado por Tolkien (e posteriormente por seu filho Christopher). Não que seja ruim, pelo contrário. Saber o que estava acontecendo nas terras do sul ou o que os ancestrais dos hobbits estavam fazendo, é sempre legal. Porém, é possível sentir nesses momentos uma certa desconexão com o resto da série. Parece meio forçado.

No início havia Eru

A introdução do filme A Sociedade do Anel é uma das coisas mais primorosas que o cinema de fantasia já produziu. Peter Jackson e a turma da WETA Digital, em poucos minutos, conseguiram passar toda a angustiante vitória dos povos livres da Terra-média contra Sauron. Elrond ao lado de Gil-galad liderando as tropas élficas. Elendil e seu filho Isildur pelos homens. Muitas hostes de orcs e, claro, o próprio Senhor do Escuro com a sua maça gigantesca destruindo legiões inteiras. “E algumas coisas que não deveriam ter sido esquecidas foram perdidas. A história virou lenda. A lenda virou mito. E por dois mil e quinhentos anos, o anel ficou fora de todo conhecimento.”

Meu grande sonho era ver o início de O Silmarillion com a mesma imponência acontecendo bem diante dos meus olhos. Não precisei esperar por dois mil e quinhentos anos. Duas décadas foram longas o suficiente. Mas valeu a pena. Os minutos iniciais de Os Anéis de Poder ficaram incríveis e situam o espectador mais desavisado na trama maléfica de Morgoth e seus vassalos. Porém, confesso que gostaria de ter visto mais sobre os principais momentos da Primeira Era. Mas mostraram dragões, águias e muito elfo contra orc (aqui deixarei um apelo à Amazon Brasil, não façam a tradução de orc para orque, pelo amor de Eru). Não saciou a minha vontade, mas foi o suficiente para fazer frente à introdução irretocável de Peter Jackson!

Acredito que tenha funcionado melhor para quem não leu os livros ou viu os filmes. As sequências iniciais, narradas também pela Galadriel (Morfydd Clark), cumprem o papel de mostrar resumidamente o que estava acontecendo antes da série começar de fato. Finrod, Morgoth, As Árvores Telperion e Laurelin, Valinor. Enfim, a mitologia de Tolkien mostra a que veio logo de cara e as semelhanças com a trilogia do Peter Jackson deixam tudo melhor.

Conheço de algum lugar

Por falar no diretor neozelandês, a produção da série chegou a procurar Jackson e sua esposa Fran Walsh, para ajudarem na concepção do roteiro. A dupla acenou positivamente, porém, os escritos nunca chegaram às mãos do casal. É uma pena, porque tudo o que foi mostrado até agora dá a entender que Os Anéis de Poder poderia se passar no mesmo universo da trilogia. A grafia das letras, o design dos personagens, os enquadramentos, os diálogos, até o tema principal da série foi feita por Howard Shore, principal compositor da trilogia. Mas não, os showrunners J.D. Payne e Patrick McKay deixaram claro que este é outro universo.

Mas voltemos à série e aos salões gigantescos e ricamente adornados de Khazad-dûm! Em certo momento, Elrond (Robert Aramayo) vai ter com o príncipe Durin IV (Owain Arthur). Lembram das Minas de Moria nos filmes? Toda destruída, infestada de goblins e a terrível Chama de Udûn espreitando no escuro? Assim como o início de Arda, eu sempre sonhei ver o trabalho dos artífices anões em todo o seu esplendor e glória. Minha mente já havia viajado milhares de vezes para os salões intermináveis com o povo de Durin (e sim, as anãs têm barba) correndo de lá para cá enquanto comem carne de porco, bebem cerveja e fazem disputas de força e resistência apenas por diversão. Imaginem a minha alegria quando Elrond adentra às cavernas e lá, ao lado dele, pude ver como o lugar é realmente único. “E eles chamam de uma Mina! Uma Mina”.

Assim como Khazad-dûm, outras localizações de suma importância para a história da Terra-média lembram muito as criações da WETA Digital. Lindon, o reino sagrado dos elfos liderados pelo Alto-Rei Gil-galad (Benjamin Walker). Rhovanion, onde moram os Pés Peludos. Valinor, a terra abençoada e imortal onde tudo começou. As fazendas dos homens corruptíveis perto da futura Mordor. Tudo me fez lembrar da trilogia dos cinemas e me faz pensar se as declarações de J.D. Payne e Patrick McKay são só para despistar os mais fanáticos.

Rebobine, por favor

Imagino que deu para perceber que gosto muito da mitologia tolkieniana. Sou tão apaixonado que vi a estreia com os livros e os mapas da Terra-média ao lado. E com tanto fanatismo não posso deixar passar certos momentos desconexos com o que foi escrito por Tolkien. Tomemos o final do primeiro episódio e a sequência do segundo. Galadriel, após receber a maior honra para qualquer elfo, segue seu caminho para Valinor junto de seus companheiros de batalha, para viverem eternamente na terra abençoada. Porém, ela decide se jogar ao mar e voltar para a Terra-média para terminar sua caçada à Sauron. Sem problemas, afinal ela é uma das elfas mais fortes e resistentes. Porém, a distância mais curta entre os dois lugares é de mais de 300 quilômetros. Tudo bem que ela, pela sorte de Eru, encontra alguns náufragos à deriva e não se sabe quanto tempo ela ficou nadando.

Esse trecho é um excelente exemplo do que a produção pretende fazer com as brechas deixadas por Tolkien. Isso nunca aconteceu. Galadriel só retorna à Valinor após os eventos da Terceira Era, como mostrado nos filmes. Outro momento que surgiu apenas na série, é o pedido de Gil-galad para Elrond ajudar Celebrimbor (Charles Edward) na criação de objetos poderosos e de valor, os Anéis de Poder. Nos livros, o elfo artífice, confecciona os itens sozinhos e com Sauron, que se apresenta como o elfo Annatar, fungando em seu cangote.

Para o fã mais xiita, isso pode doer como uma facada no escuro. Mas ao meu ver, as ações tanto de Galadriel, quanto de Elrond, estão lá para mostrar o quanto essa raça é valorosa e obstinada. A tenacidade da neta de Finwë e a sagacidade do meio-elfo, são ainda mais vistosas quando colocadas em prática. Tenho certeza que Tolkien teria gostado.

Lá e de volta outra vez

O início de Os Anéis de Poder não poderia ter sido melhor. Os episódios são verdadeiras obras cinematográficas. Não é à toa que esta é a série mais cara da história. A produção está perfeita. O meu maior medo era ver os ideais de Tolkien sendo distorcidos para atender às massas sedentas por representatividades absurdas. Veja bem, o problema não é a representatividade, mas sim a ideologia acima da arte. E felizmente isso não aconteceu.

Os ideais de Tolkien se sobressaem a todo momento. Amor ao próximo, compaixão pelo estranho (Gandalf, eu sei que é você), a inocência dos mais novos, a resiliência nos momentos de necessidade e principalmente o companheirismo acima de tudo. Se você gostou da série (e dos filmes) mas ainda não leu as obras do autor sulafricano, recomendo ir agora até a biblioteca mais próxima para cair de cabeça nessa mitologia linda e cheia de vida. Tenho certeza, meu velho amigo, que este será um dia para ser lembrado!

Quando a série acabar eu volto aqui com o veredito e a nota final!

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